quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Para Entender a Idade Média - G.K. Chesterton


E por que homens que não conhecem a História... pensam que a conhecem?


É inteiramente razoável que os homens prósperos do nosso tempo não saibam História. Se a conhecessem, teriam de conhecer a história muito pouco edificante de como se tornaram prósperos...

É inteiramente razoável, digo, que não saibam História: mas por que raios pensam que sabem? Aqui está uma opinião, tomada a esmo do livro de um dos mais cultos dentre os nossos jovens críticos, obra muito bem escrita e inteiramente digna de confiança – quando trata do seu próprio tema, que é um tema moderno. Diz esse escritor: “Na Idade Média, houve pouco ou nenhum avanço social ou político” até a Reforma e a Renascença.

Ora, eu poderia igualmente bem afirmar que, no século XIX, houve pouco avanço na ciência e na técnica até a vinda de William Morris (1), e depois justificar essa afirmação dizendo que não tenho nenhum interesse pessoal por teares a vapor ou águas-vivas – o que certamente é o caso. Porque isto é tudo o que o escritor realmente quis dizer: que não tem nenhum interesse pessoal por arautos ou abades mitrados. Tudo isso está muito bem; mas por que, ao escrever sobre coisas que não existiam na Idade Média, esse autor sente a necessidade de dogmatizar sobre um assunto de que evidentemente nunca ouviu falar? E sobre o qual, apesar de tudo, talvez ainda se pudesse contar uma História muito interessante?

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(1) William Morris (1834-1896): Artista e escritor inglês, contribuiu com grande sucesso para a valorização e o aprimoramento das mais variadas formas de arte (desde a decoração até a arquitetura e a iluminura), chegando mesmo a fundar empresas bem-sucedidas nesse ramo (entre elas, a tipografia Kelmscott Press, em 1890). Ao fim da vida, deixou de lado os seus êxitos artísticos e empresariais para dedicar-se a difusão de idéias socialistas.
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Pouco antes da conquista pelos normandos (2), países como o nosso apresentavam um feudalismo ainda incipiente e completamente pulverizado, sulcado por contínuas ondas de bárbaros, bárbaros que nunca tinham montado um cavalo. Praticamente não havia casa de pedra ou de tijolo na Inglaterra; quase não havia estradas, apenas sendas batidas; praticamente não havia lei, apenas costumes locais. Essa era a Idade das Trevas, da qual surgiria a Idade Média.
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(2) A conquista da Inglaterra pelos normandos comandados por Guilherme o conquistador ocorreu no ano de 1066.
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Mas tomemos agora a Baixa Idade Média, duzentos anos depois da conquista normanda e praticamente outro tanto antes do início da Reforma. As grandes cidades surgiram; os cidadãos são privilegiados e importantes; os trabalhadores organizaram-se em Corporações de Ofício livres e responsáveis; os Parlamentos são poderosos e litigam com os próprios reis; a escravidão desapareceu quase por completo; abriram-se as grandes Universidades, que ministram esse programa de ensino tão admirado por Huxley (3); repúblicas tão orgulhosas e patrióticas como as dos antigos pagãos erguem-se como estátuas de mármore ao longo da costa mediterrânea; e por todo o norte os homens construíram igrejas tão grandiosas que os homens talvez nunca mais as igualem. E isso – que, na sua maior parte, foi realizado mais propriamente não em dois, mas em um século –, é a isso é o que o nosso crítico chama “pouco ou nenhum avanço social ou político”. Praticamente não há instituição moderna importante que tenha influenciado a sua vida – da escola em que estudou ao Parlamento que o governa –, que não teve os seus principais avanços na Idade Média.
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(3) Thomas Henry Huxley (1825-1895): biólogo inglês, amigo de Charles Darwin e um dos maiores defensores e divulgadores da teoria evolucionista, o que fez especialmente através do seu livro Man´s Place in Nature (“O lugar do homem na natureza”, 1863), em que pela primeira vez os princípios do evolucionismo são aplicados ao homem.
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Se alguém pensa que escrevo isso por pedantismo, espero poder mostrar-lhe em um momento que tenho um objetivo mais humilde e mais prático. Quero considerar a natureza da ignorância, e começo por dizer que, em qualquer sentido escolar e acadêmico, sou eu mesmo muito ignorante. Assim como dizemos de um homem como Lord Brougham (4) que tinha um grande conhecimento geral, eu diria que tenho uma grande ignorância geral.
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(4) Henry Peter, Lord Brougham (1778-1868): político britânico nascido em Edimburgo. Suas numerosas obras, às vezes contraditórias entre si, cobriram quase todos os ramos do conhecimento da época, tendo ele escrito sobre Filosofia, Teologia, Economia e até Matemática. Destacou-se também por ter fundado revistas e sociedades de difusão do conhecimento e por ter realizado reformas no Parlamento britânico.
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Só que este é exatamente o ponto a que pretendia chegar. É um conhecimento geral e uma ignorância geral: sei pouco de História, mas sei um pouco de quase toda a História. Não sei muito, digamos, sobre Martinho Lutero e sua Reforma, mas sei que ela fez uma diferença enorme; ora, não saber que o rápido progresso dos séculos XII e XIII fez uma diferença enorme é pelo menos tão extraordinário como nunca ter ouvido falar de Martinho Lutero. Também não estou muito bem informado sobre os budistas, mas sei que se interessam por filosofia; não saber que os budistas se interessam por filosofia, acredite em mim, seria tão chocante como não saber que os medievais se interessavam pela experimentação e pelo progresso políticos.

Da mesma forma, não sei muito sobre Frederico o Grande. Na minha infância, a enorme coleção de volumes de Carlyle sobre o assunto inspirava-me medo: parecia haver tantas coisas a conhecer! No entanto, apesar desses receios, eu seria perfeitamente capaz de adivinhar, com uma razoável probabilidade de acerto, o tipo de assunto que esses volumes continham. Por exemplo, eu arriscaria (penso que não incorretamente) que os volumes deviam conter a palavra “Prússia” em um ou mais lugares; que, de tempos a tempos, se falaria de guerra; que se faria alguma menção de tratados e fronteiras; que a palavra “Silésia” poderia ser encontrada caso se procurasse diligentemente, bem como os nomes de Maria Teresa e Voltaire; que em algum lugar de todos aqueles volumes, o seu grande autor diria se Frederico o Grande tivera um pai, se chegara a casar-se, se possuíra grandes amigos, se tivera algum hobby ou aficção literária de qualquer tipo, se havia morrido no campo de batalha ou na cama, e assim por diante. Se eu tivesse reunido coragem suficiente para abrir um daqueles volumes, provavelmente teria encontrado alguma coisa, ao menos nessas linhas gerais.

Agora, troque a imagem; imagine o jornalista ou homem de letras comum, jovem e bem educado, recém-saído de uma escola pública ou faculdade, parado diante de uma coleção ainda maior de livros ainda maiores das bibliotecas da Idade Média – digamos, todos os volumes de São Tomás de Aquino. Digo-lhe que, de nove casos em dez, aquele jovem bem-educado não tem a menor noção do que iria encontrar naqueles volumes encadernados em couro. Pensa que irá encontrar discussões sobre as capacidades dos anjos de se equilibrarem sobre pontas de agulhas, e talvez o fizesse. Mas afirmo que ele não pensa – nem de longe – que irá encontrar um professor universitário a discutir quase todas as coisas que Herbert Spencer discutiu: política, sociologia, formas de governo, monarquia, liberdade, anarquia, propriedade privada, comunismo, e todas as variadas idéias que, no nosso tempo, se dedicam a brigar em nome do futuro “socialismo”.

Igualmente, não sei muito sobre Maomé ou o maometanismo. Não levo o Alcorão para ler na cama toda noite. Mas, se em determinada noite o fizesse, há pelo menos um sentido em que sei o que não encontrarei nele. Suponho que a obra não transbordará de fortes encorajamentos ao culto dos ídolos; que não se cantarão ali em alta voz os louvores do politeísmo; que o caráter de Maomé não será submetido a nada que se parece com o ódio e o ridículo; e que a grande doutrina moderna da irrelevância da religião não será enfatizada sem necessidade.

Mas troque novamente a imagem, e imagine o homem moderno (o pobre homem moderno) que tivesse levado um volume de teologia medieval para a cama. Ele esperaria encontrar ali um pessimismo que não há, um fatalismo que não há, um amor à barbárie que não há, um desprezo pela razão que não há.

Aliás, seria na verdade muito bom que fizesse a experiência. Far-lhe-á bem de uma forma ou de outra: ou o fará dormir – ou o fará acordar.

1 comentários:

Roberto Vargas Jr. disse...

Caro Vitor,
Bom este texto de Chesterton. É algum artigo isolado ou parte de alguma obra?
Há muito que critico a visão de que a Idade Média foi a "Idade das Trevas". Isso não passa de um preconceito ilunimista que se tornou "verdade" por repetição.
É um absurdo que um homem de um determinado tempo julgue outras épocas pela sua. Seus critérios são distorcidos. Cada época tem que ser julgada de acordo com seu próprio tempo.
Aliás, olhando para o mundo a nossa volta, apesar de claros "avanços", o que me impede de afirmar que vivemos uma época de trevas? Na Idade Média havia abusos e absurdos. E hoje não os há?
Apenas uma cegueira completa e intencional pode fazer que alguém repita este preconceito como um mantra.
Abraço,
Roberto

 
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