quarta-feira, 29 de julho de 2009

Resenha de "The Testimony of the Beloved Disciple"



Tradução: Rodrigo Gonçalves de Souza

Anglicano da IEAB, Missão Santo Agostinho de Cantuária
Blogueiro: informadordeopiniao.blogspot.com
defideorthodoxa-informadordeopiniao.blogspot.com
colabora como convidado em adcummulus.blogspot.com


Muitas coleções de artigos de um estudioso bíblico publicados anteriormente sobre um tópico não parecem merecer ainda mais um livro em uma indústria já saturada. Ninguém pode com imparcialidade, acusar este volume de cair nesta categoria. Richard Bauckham, recentemente aposentado da Universidade de St. Andrews, tem uma distinta carreira como um escritor prolífico sobre uma incrível variedade de temas, sem dúvida nenhum deles mais importantes do que suas obras sobre o Evangelho de João. Apesar de que o oferecido neste volume são reimpressões ou revisões de ensaios que tenham surgido noutras ocasiões (e um é uma reformulação de uma seção de um livro recente de Bauckham), muitos foram disponibilizados em fontes pouco conhecidas e todos merecem a maior audiência e contexto que a sua apresentação neste volume irá proporcionar.

O Capítulo "Características Historiográficas do Evangelho de João" apresenta elementos que ligam este documento mais com história do que biografia, ou, pelo menos, mais do que no Sinóticos. Estes elementos incluem informações precisas de topografia e cronologia e a utilização de testemunhas oculares e numerosos discursos ou diálogos Nada disso torna o Evangelho necessariamente preciso em tudo que apresenta, mas deixa a porta aberta para tal conclusão dado gênero literário que resulta deste estudo. O Capítulo "A Audiência do Evangelho de João" demonstra quão pobremente as influências da abordagem de J..L Martyn, de uma leitura de dois níveis da narrativa (algumas poucas coisas reais da vida de Jesus, mas mais transparecendo as realidades do final do primeiro século) realmente funcionam. As passagens de excomunhão podem não refletir qualquer vasto emprego da Birkath-ha-Minim [ Bênção dos hereges, que fora promulgada na liturgia judaica a partir do Concílio de Jamnia – final do séc.I - para excomungar alguns considerados hereges, como os cristãos, que até então incluíam alguns que buscavam participar dos ritos comunais judaicos – N. do T.], numerosos personagens obviamente não representam alguém da comunidade de João ou sua oposição, e o uso geral da Patrística via a audiência de João como a mais ampla e não sectária.

A comparação entre o dualismo, nos Rolos do Mar Morto, especialmente no que diz respeito à luz e as trevas, mostra que os paralelos com o João não estão tão perto quanto às vezes se tem mantido. Estudiosos foram corretos ao balançar o pêndulo para longe do pano de fundo greco-romano para judaicos para esses fenômenos e correlacionados, mas o caso de fazê-lo pode ser ainda melhor visualizado simplesmente pelos paralelos do Antigo Testamento. A literatura rabínica e Josefo referem-se a pelo menos dois poderosos e ricos líderes judaicos pelo nome de Nicodemos na elite da família Gurion. Provavelmente não há nenhuma combinação com o de João, mas dada a freqüente prática do reaproveitamento de alcunhas familiares e a raridade deste nome particular fora desta família, tudo no Quarto Evangelho sobre Nicodemos reverbera verossimilhança. .

Lázaro, Marta e Maria, por outro lado, eram nomes judeus extremamente comuns. Portanto, o aparecimento do Lázaro ressurreto, em João 11 não requer as hipóteses de empréstimos da parábola de Lucas 16:19-31. Afinal, nenhuma ressurreição é requisitada lá, apenas uma aparição temporária a partir do reino dos mortos. Por outro lado, os retratos das duas irmãs que mostram a combinação certa de semelhanças e diferenças entre Lucas 10:38-42 e João 11/12 sugerem que João pode muito bem fornecer retratos historicamente precisos sem simplesmente tomar emprestado de Lucas. Semelhante lógica apóia a autenticidade da cena do caminhar sobre as águas em João 13- a coerência com a logia [Na erudição do Novo Testamento, o termo logia refere-se primariamente à suposta coleção dos ditos de Jesus que se acredita ter sido mencionada por Papias. N. do T.] empregada sem paralelismo íntimo o suficiente para sugerir dependência em qualquer ponto.

Em um estudo do messianismo judaico, no Quarto Evangelho, Bauckham mostra como os vários retratos de Jesus como Cristo, profeta como Moisés, e Filho do Homem todos refletem o justo equilíbrio da coerência com os substratos judaicos e encaixam com a “progressiva auto-revelação” de Jesus, como para ser credível nos contextos aos quais João atribuiu-os. Em seu enfoque sobre monoteísmo e Cristologia neste Evangelho, Bauckham mostra como os ditos de Jesus referentes a "unidade com o Pai”, o “Eu-Sou” e outros exemplos deste exercício das suas prerrogativas divinas nunca são redigidas de forma a sugerir um comprometimento para com o monoteísmo. Na verdade, os relevantes substratos do Antigo Testamento mostram que o que se traz de Jesus é justamente que a sua relação com o Pai "é parte integral para que Deus seja O Único" (p. 252).

A santidade de Jesus no Quarto Evangelho é para ser espelhada na santidade dos discípulos, com exceção de que ela não é absoluta para eles, e (portanto) eles não são expiadores dos pecados do mundo, como Cristo foi. Mas os separa do mundo para que possam ser portadores de sua mensagem para o mundo. O misterioso número 153 para a quantidade de peixes capturados em João 21:11 deve ser entendido como altamente simbólico, dada a característica prevalecente do simbolismo algébrico judaico nos dias de João. Além de endossar algumas sugestões anteriores, Bauckham observa que o equivalente numérico do grego das quatro palavras-chave no primeiro "término" do Evangelho de João 20:30-31 para "assinar", "crer", "Cristo" e "vida" são 17, 98, 19 e 36, respectivamente. 153 é o "triângulo" de número 17 (a soma dos números de 1 a 17, e a soma de 98, 19 e 36 também é 153). O que quer que tudo isso mais implique, certamente sugere que a mesma pessoa por trás do capítulo 21 escreveu o restante do Evangelho [ Paul S. Minear, em “The Original Functions of John 21”, 1985, já havia feito uma vigorosa defesa dessa posição – N. do T.] !

Uma breve resenha dificilmente pode avaliar cada uma destas contribuições pormenorizadamente. Pergunto-me se para Bauckham, “João, o Ancião”, que tão estreitamente se assemelha ao filho de Zebedeu em perfil, teria sido tão facilmente reconhecido como distinto dele, especialmente desde que o único personagem chamado João no Quarto Evangelho é o Batista, mas a ele nunca é dado este epíteto. Alguém que não seja João, filho de Zebedeu, foi capaz de fazer isto sem temer ambigüidades, especialmente quando o Evangelho circulou para muito além dos seus iniciais destinatários efésios - como Bauckham salienta? É preciso escolher entre Bauckham e Larry Hurtado, por exemplo, o qual salienta a segregação parcial do monoteísmo em várias vertentes de judaísmos periféricos em binitarianismo? Apesar das notáveis coincidências de somas numéricas, temos qualquer controle sobre tais especulações algébricas para dar-nos alguma confiança que João realmente pretendeu isto?

Mas estas são bagatelas menores. Globalmente, este é uma coleção de ensaios extraordinariamente meticulosa, criativa, e que mesmo rompe paradigmas, sendo que cada um merece um estudo cuidadoso, e quase todos merecem aceitação generalizada. Adquira este livro, maravilhe-se com ele e digira-o. Bauckham deve ser tão mais esclarecido e lúcido na sua aposentadoria quanto ele fora durante a sua ilustre carreira!

Craig L. Blomberg, Ph.D.
http://www.denverseminary.edu/

Distinguished Professor of New Testament
Denver Seminary
December 2007




domingo, 26 de julho de 2009

Você Irá Sofrer | John Piper

domingo, 19 de julho de 2009

Resenha de Making Sense of the New Testament

Resenha do livro Making Sense of the New Testament: Three Crucial Questions - Craig Blomberg
Tradução livre: Obtendo o Sentido do Novo Testamento: Três Questões Cruciais


Este livro explora três aspectos controversos da pesquisa do Novo Testamento a partir de uma perspectiva cristã conservadora. Foi concebido para ser um volume companheiro para o de Longman Tremper, Making Sense of the Old Testament: Three Crucial Questions , que faz parte de uma série maior de Baker que aborda o tema "três questões fundamentais" em fervorosamente contestadas questões bíblicas e teológicas (13). Longman divide seu estudo em três grandes questões sobre hermenêutica, teologia, e de aplicação, enquanto Blomberg divide seu estudo em três grandes perguntas sobre Jesus, Paulo, e aplicação. No primeiro capítulo Blomberg avalia a confiabilidade histórica do Novo Testamento. No segundo ele compara os ensinamentos de Jesus e Paulo e pergunta se Paulo foi o segundo ou o verdadeiro fundador do cristianismo. No terceiro capítulo ele delineia vários princípios para a aplicação judiciosa dos textos para um contexto contemporâneo. Estes três locus de heurística, ele adverte, abrangem a maior parte da literatura do Novo Testamento e concentra o estudo sobre os debates mais importantes na pesquisa neotestamentária e teologia da Igreja. Esta revisão irá analisar o tratamento de Blomberg destas três questões cruciais e avaliar a contribuição do livro para o campo.

Capítulo 1 pergunta: "Será que o Novo Testamento é Historicamente Confiável" (17)? O interlocutor oculto neste capítulo e em todo o livro é o pesquisador liberal moderno, que subestima a histórica credibilidade do Novo Testamento, conclui Blomberg. Seu primeiro alvo é o Jesus Seminar. Eles são culpados, ele argumenta, do círculo vicioso, uma vez que pressupõem as suas conclusões. Uma vez que a impossibilidade de milagres é pressuposto, por exemplo, então, naturalmente, as histórias de milagres dos Evangelhos serão julgadas fictícias. Além disso, o novo Acts Seminar é culpado das mesmas "abordagens imperfeitas" (19). Inversamente, porém, a Terceira Busca para o Jesus histórico é mais otimista sobre a possibilidade de obter conhecimento seguro da vida de Jesus a partir do Novo Testamento, e Blomberg compartilha desse otimismo.Ele reúne evidências históricas para a confiabilidade do Novo Testamento, do harmonioso retrato de Jesus que surge a partir do Evangelho e da sua confirmação por escritos de não-cristãos (judeus e historiografia greco-romana), a arqueologia, e os pais apostólicos. Blomberg admite que nem todos os argumentos individuais que ele encaminha serão incontornáveis, mas as suas forças combinadas são convincentes: "Cumulativamente, no entanto, um caso impressionante pode ser feito para a grande confiabilidade dos Evangelhos e Atos, através de critérios históricos por si só" (70). Mas seu subdeterminado uso de "história" é precisamente o problema. Embora Blomberg utilmente distingue entre contemporâneas e antigas "convenções para escrever história e biografia" (29 - 30), ele nunca articula explicitamente sua concepção da "história" e em que sentido exato do Novo Testamento é e não é "historicamente" preciso. O debate depende da concepção de um emprego de história.

Capítulo 2 pergunta: "Foi o Paulo o verdadeiro fundador do cristianismo?" (71). Subjacente a esta questão são as diferenças prima facie entre os ensinamentos de Jesus e Paulo e da suposta falta de conhecimento deste dos pormenores biográficos de Jesus. Neste capítulo Blomberg refuta este persistente equívoco da pesquisa liberal (representada por Baur, Wrede, Bultmann, e Lüdemann). Ele começa por apontar amplos conhecimentos paulinos dos ensinamentos de Jesus (73-81). Atos e as epístolas paulinas indiscutíveis revelam a significativa profundidade de conhecimento de Paulo, e ele certamente sabia mais do que ele cita ou alude à, nestas cartas. Em seguida ele traça o conhecimento paulino de outros elementos na tradição do Evangelho (81-84). A razão para Paulo não clamar mais sobre seu conhecimento de Jesus é porque sua audiência já teria sido familiarizada com o básico dos detalhes biográficos. Por fim, ele enumera seis decisivas semelhanças teológicas entre Jesus e Paulo: justificação pela fé e do reino de Deus, o papel da lei, a missão e Gentios na igreja , o papel das mulheres (sobre o qual muitos acirrariam uma disputa), cristologia e escatologia . Em resposta à pergunta que ele colocou no início do capítulo, Blomberg declara que Paulo foi "de nenhuma forma" o verdadeiro ou o segundo fundador do Cristianismo (105). Pelo contrário, Paulo baseia-se na tradição que ele recebeu de Jesus, os apóstolos e seu encontro com Cristo, que ele transmitiu ao mundo gentio.

Embora Blomberg reconheça as diferenças entre os seus ensinamentos, ele argumenta que eles são muito mais afins do que "modernos céticos" têm sugerido: "As linhas de continuidade entre Paulo e do Jesus Histórico novamente superam as diferenças" (78). Mas, como na primeira seção, Blomberg rejeita muitos argumentos sem lhes dar um amplo e avançado questionamento e sem muitos argumentos que justificam-no plenamente.

Ele apela constantemente à limitação de espaço e refere-se a outras obras quando alega que não teria tido muito mais espaço para aprofundar a argumentação central em maior detalhe.


Capítulo 3 pergunta: "Como o cristão aplica o Novo Testamento à vida?" (107). Esta seção é direcionada para os cristãos que desejam incorporar os ensinamentos do Novo Testamento em suas vidas. Blomberg lamenta que os cristãos encontram frequentemente subaplicações do Novo Testamento que são, por vezes, apenas humorísticas e por vezes extremamente perigosas. Desde que subaplicações se baseiam em interpretações erradas, ele pretende sistematizar princípios hermenêuticos e procedimentos que irão facilitar a interpretação. Ele define quatro etapas para a "legítima aplicação bíblica" na tentativa de transferir a sua aplicação original do texto para um contexto contemporâneo (108). Em seguida ele trata os principais gêneros de textos do Novo Testamento e orienta o leitor a especificidade de cada um dos livros e gêneros que devem nortear exegese. Ele prossegue explicando específicos princípios de hermenêutica. Grande parte do seu conselho poderia ser reduzido ao princípio da contextualização: saber como subseções se encaixam dentro de um texto maior e como é a sua localização entre um particular parágrafo ou livro, impactos e significado. Por último, Blomberg engaja-se no problema difícil de determinar se o ensino de Paulo sobre um determinado assunto ou situação é específico- normativo, dada a "ocasional" natureza das epístolas e seu status como escritura (133). Nesta parte e em toda a seção suas sugestões são perspicazes e úteis, mas o seu âmbito é limitado pelo seu viés protestante conservador [???]. Um cristão ortodoxo ou católico, por exemplo, poderá formular os problemas e enunciar soluções hermenêutica muito diferente [Não se diria o mesmo no caso de papéis trocados? – N. do T.].


O mérito do estudo de Blomberg é a sua acessibilidade. Introduz e sintetiza os principais debates e métodos dos estudos do Novo Testamento sem saturar o leitor com minúcias. Os não-especialistas irão se beneficiar o seu amplo alcance, e especialistas irão se beneficiar de sua apresentação concisa das questões. Nem todos vão concordar com suas conclusões, especialmente os estudiosos liberais contra quem ele abre polêmica, mas todos irão apreciar o seu domínio sobre o terreno. Argumentos de Blomberg refletem um viés cristão evangélico conservador, e aqueles que não compartilham seus compromissos podem se sentir alienados quando lerem a terceira seção, em particular. É preciso não esquecer que este livro é destinado aos leitores simpatizantes, e por isso tem um tom apologético e polêmico. A principal falha no livro é um subproduto da sua brevidade. Em muitas ocasiões a crítica de Blomberg falha em desenvolver seus argumentos suficientemente. Suas restrições de espaço resultam em argumentações subdesenvolvidas, que é o preço pago pela concisão e acessibilidade. O estudo de Blomberg vai servir como uma útil introdução a essas questões contenciosas para igrejas cristãs conservadoras e seminários. Para as universidades e seminários menos conservadores, a melhor introdução seria de Raymond E. Brown, Uma Introdução ao Novo Testamento. O livro de Blomberg, porém, é uma contribuição positiva para a pesquisa do Novo Testamento.

Mark S. M. Scott
Harvard University
Cambridge, MA 02138

sábado, 4 de julho de 2009

Vidas de Ambrósio e Agostinho: Parte II



Dando continuidade ao nosso breve resumo das vidas de Sto. Ambrósio e Sto. Agostinho, trataremos agora da vida de Aurélio Agostinho. Nascido em Tagaste, onde hoje fica a Argélia, no ano de 354 d.C., e em 396 d.C. foi eleito bispo coadjutor de Hipona (auxiliar, com o direito de sucessão depois da morte do bispo corrente) e pouco depois bispo principal. Ele permaneceu como Bispo de Hipona até seu falecimento no ano de 430 d.C.


2. Agostinho de Hipona


Assim como Ambrósio, Agostinho não tinha muito interesse na religião cristã, filho de uma cristã fervorosa, Mônica, Agostinho dizia que a religião de sua mãe não era nada mais do que "fábulas de velhas". Apesar de nascido na Igreja, ele viveu uma vida libertina e teve um filho com sua concubina, chamado Adeodato.


Agostinho era um homem intelectual e muito estudioso. Ele é atraído à vida filosófica pela leitura de Hortensius, obra de Cícero que se perdeu no tempo. Fiel ao ideal filosófico, ele se torna um devorador de livros, porém, algo o deixava insatisfeito:


"Um único ponto fazia diminuir meu ardor: o nome de Cristo não estava no livro. Este nome, segundo os olhares de vossa misericórdia, Senhor, este nome de meu Salvador, vosso Filho, meu terno coração de criança o tinha sugado com amor, sugando o leite de minha mãe; dele conservava o mais alto apreço. Tudo aquilo de que estivesse ausente este nome, ainda que fosse de uma obra literária douta, bem escrita e verídica, não me atraía em absoluto".


Nas Confissões, ele escreve: "Criaste-nos para Ti, e o nosso coração vive inquieto até repousar em Ti." Esse anseio de Agostinho, como veremos logo adiante, é manifesto durante todas as etapas de sua vida.


2.1 A Peregrinação de Agostinho à Fé Cristã


Primeiro, Agostinho buscava o ideal mundano - fama, ganhos, honras, cargos. Ele queria tomar do mundo tudo quanto fosse possível. Isso não o satisfez e o levou ao ideal religioso. Nesse momento, certas objeções afastavam Agostinho do Cristianismo, são elas o problema do mal e o pouco valor literário da Bíblia. Assim, Agostinho abraça o maniqueísmo que oferecia uma certa resposta ao problema do mal e usava da Bíblia apenas aquilo que lhes apetecia. O maniqueísmo era uma seita moralista que propunha uma Igreja só de puros. Agostinho vai acabar por se desiludir com o Maniqueísmo por dois motivos principais, primeiramente, Agostinho tinha algumas dúvidas que nenhum líder maniqueísta consegue responder satisfatoriamente, Agostinho era exortado a esperar por Fausto, um líder maniqueísta que viria e responderia suas indagações. Ao se deparar com Fausto, Agostinho se desiludiu com o maniqueísmo ao ver que a argumentação de Fausto nada tinha de substancial, mas apenas muita retórica. Alinhado com isso, ele percebe que o ideal de pureza dos maniqueus era falso, ele disse: "Esses homens não vivem o ideal de pureza que pregam; mentirosos, não vivem o que ensinam e pretendem viver.' Com isso, Agostinho percebe que não se pode exigir uma Igreja só de puros, o mal é algo intrínseco à natureza humana pelo fato de o ser humano já nascer herdeiro do pecado de Adão - isso vai levá-lo a desenvolver a doutrina do pecado original e será útil na sua batalha contra Pelágio que dizia que a salvação é obtida através da santificação pessoal.


A partir desse momento ele começa sua caminhada àquilo que fazia sua alma viver ansiando - o cristianismo. Agostinho abraça o neoplatonismo, esta doutrina lhe apresenta uma resposta satisfatória para o problema do mal, para o neoplatonismo o mal nada mais é do que a ausência de bem e não uma entidade que exista independente do bem. Nas suas Confissões, ele diz que o mal é como um parasita, pois não tem existência pŕopria, mas vive de deturpar o bem. Uma mentira, por exemplo, não existe por si só, mas existe como deturpação da verdade. E assim, Agostinho encontra a solução para um dos problemas que o afastavam do cristianismo, além disso, o neoplatonismo apresenta toda uma visão espiritual de Deus, descrito como o Uno, acima de todas as coisas, fonte da qual brota a realidade toda e para a qual tudo converge. Mas faltava a resposta ao problema do pouco valor literário da Bíblia e aí entra o Bispo Ambrósio de Milão. Agostinho assim descreve o seu primeiro encontro com Ambrósio:


'Vim, pois, a Milão ter com o bispo Ambrósio, por sua virtude conhecido em todo o mundo, como alma de elite e vosso piedoso servidor. Sua grande eloquência servia então ao vosso povo 'o alimento de vosso trigo', 'a alegria de vosso óleo', 'a sóbria embriaguez' do vinho. Vós me levastes a ele sem eu o saber, para que por meio dele voltasse sábio a Vós. A acolhida deste homem de Deus foi para mim a de um pai e teve, por minha qualidade de estrangeiro, atenção que se pode esperar de um bispo"


Ambrósio, além de pregar utilizando o neoplatonismo, usava a exegese alegórica de Orígenes e revela a Agostinho a chave para compreensão do texto bíblico: 'Toda Escritura é espiritual." Orígenes afirmava que haviam dois sentidos no texto das Escrituras são eles (1) o sentido literal e (2) o sentido espiritual, este último só podia ser descoberto com a pureza de caráter, justamente por isso eram tal dificeis de serem compreendidos.Os textos que, para Agostinho, pareciam "ensinar um erro", agora, através da exegese de Ambrósio, revelavam seu verdadeiro sentido espiritual e se tornavam inteligíveis.


Não podemos deixar de mencionar uma experiência espiritual que também marcou profundamente o início de sua caminhada cristã e dissipou definitivamente suas dúvidas, deixemos Agostinho falar por si mesmo:


“Indaguei as profundezas ocultas da minha alma, arranquei os seus piedosos segredos e, quando os tive todos juntos diante dos olhos do meu coração, eclodiu em mim uma grande tempestade que provocou um dilúvio de lágrimas… Com efeito senti que era ainda escravo dos meus pecados e na minha miséria não cessei de repetir entre gemidos: “Até quando continuarei a dizer: amanhã, manhã? Porque não agora? Porque não acabar neste momento com os meus horríveis pecados?”.


Estava eu a fazer-me estas perguntas e chorava com a mais viva dor no meu coração, quando senti de repente uma voz infantil numa casa próxima. Não seria capaz de dizer se era voz de menino ou de menina: sei, no entanto, que continuava a repetir o refrão: “Toma e lê! Toma e lê!”. Olhei em volta e pus-me pensar se haveria algum jogo em que as crianças repetissem estas palavras, mas não me lembrava de alguma vez tê-las ouvido antes. Enxuguei as lágrimas e levantei-me a dizer que só podia ser Deus que me ordenava que abrisse o livro das Escrituras e ler a primeira passagem que surgisse aos meus olhos. De facto, eu já tinha ouvido dizer que Antão tinha entrado numa igreja enquanto se lia o Evangelho e tinha pensado que se dirigiam a ele pessoalmente as palavras que ouviu ler: “Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres; depois, vem e segue-me!”. Esta mensagem divina tinha-o convertido imediatamente.


Apressei-me então a voltar para onde Alípio estava sentado, porque, quando me levantara para me ir embora, tinha deixado ali o livro das cartas de Paulo. Peguei nele, abri-o e li as primeiras palavras que me surgiram diante dos olhos: “Não nas orgias nem na embriaguez, na imoralidade ou na lascívia, não nas contendas ou ciúmes, pegai antes nas armas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não queirais contentar a vossa natureza pecadora nem satisfazer os seus desejos”.


Não quis ler mais, nem tive, aliás, necessidade. Num instante, tendo chegado ao fim da frase, foi como se a luz da fé tivesse inundado o coração, fazendo desaparecer todas as trevas da dúvida”.


AGOSTINHO, Confissões VIII, 12


A experiência de ouvir a voz infantil dizendo "Toma e lê!" é semelhante à experiência de Ambrósio que através de outra voz infantil - "Ambrósio, bispo!" - iniciou sua vocação episcopal. Dois gigantes da Igreja marcados por uma inocente voz infantil. Aí entende-se o porquê que a voz das crianças era considerada quase como a voz do próprio Deus.


Essa experiência mística aliada com o neoplatonismo e a exegese alegórica de Orígenes era a união da fé com a razão que faltava para Agostinho se tornar o Santo Agostinho. "A fé não pode contradizer a razão" afirmou Gregório de Nissa. Na patrística a fé não era vista como inimiga da razão, mas eram aliadas, a fé verdadeira precisava ser inteligível e nem por isso se tornava árida e distante da práxis cristã, assim, vemos que os maiores téologos e defensores da ortodoxia na patrística eram também pastores zelosos das almas de seus rebanhos que não hesitavam perante o poder dos imperadores ou dos prazeres mundanos.


2.2 O Pensamento de Agostinho


Agostinho é, junto com Tomás de Aquino, o maior pensador da história da Igreja e sua obra é de tal dimensão que torna inviável considerá-la aqui, porém, alguns pontos podem ser levantados.


2.2.1 Agostinho diante das Escrituras Sagradas:


Agostinho já estava ciente das divergências textuais dos diversos textos da Bíblia. Ele afirma que devíamos preferir uma versão latina chamada de Itala - da qual não restou nenhum vestígio. Ele também sente algumas dificuldades em compreender a relação entre os dois Testamentos. Na sua luta contra os maniqueus, que negam a validade do Antigo Testamento, ele é pressionado a resolver o problema, daí ele vai dizer que o Antigo Testamento está ocultado no Novo e no Novo está a manifestação do Antigo, portanto, a censura dos maniqueus em relação ao Antigo Testamento e aceitação do Novo seria incoerente, já que a negação de um implica na negação do outro. Agostinho vai explicar a unidade entre os dois testamentos pelo fato de ambos terem Cristo como autor, não sendo Cristo apenas a chave hermenêutica de interpretação das Escrituras - como diziam Inácio de Antioquia e Clemente de Alexandria - mas também como o próprio autor das Escrituras. As diferenças entre os Testamentos são explicadas através do conceito da pedagogia de Deus, Deus para se fazer entendido pelo homem se revela progressivamente, por exemplo, tendo que lidar com homens carnais que querem se vingar, Deus lhes dá a lei do talião, para levá-los um dia, num caminhar progressivo, ao perdão das ofensas até mesmo de seus próprios inimigos.


Na teologia de Agostinho encontramos três conceitos fundamentais: a graça, o sacramento e a verdade. A graça é o primeiro deles, é para Agostinho, um estado onde o homem apesar de não ver o que ele crê, ele deseja o que se ama. Isso significa que o impensável que está em meu espírito, o impossível que está no meu coração, são pensáveis e possíveis em Deus. Deus pode pensá-los por nós, em nós. Deus os torna possíveis. Nós passamos, então, a amar e desejar o que Deus manda, dessa forma somos levados a realizar a lei que Deus nos deu. O conceito de Sacramento, que seria um instrumento necessário para se chegar a Deus, são instrumentos que servem para nos levar a compreender certas verdades de Deus. E o conceito da Verdade, a graça derramada no coração do homem inscreve em seu coração a verdade de Deus.


2.2.2 Agostinho diante da pregação da Palavra:


Para se pregar a Palavra é necessário uma certa cultura, no mínimo precisamos conhecer uma língua e os detalhes da cultura na qual estamos inseridos. Isso leva Agostinho a se perguntar se haveria uma cultura necessária para quem quer pregar a Palavra. Na obra A Doutrina Cristã, muito influente na Idade Média, S. Agostinho explica com quais princípios deveríamos ler a Bíblia e trata da questão da cultura clássica. Agostinho afirma que a cultura clássica é dispensável, dizendo que basta ao pregador o conhecimento da Bíblia e dos mestres cristãos. Mas ele acrescenta que a retórica pode ser útil, pois é uma técnica para utilização da palavra, portanto, apesar de a cultura clássica não ser indispensável, ela pode nos ser útil se aliada com a cultura cristã encontrada na Bíblia e nos autores cristãos.


Agostinho reconhecia alguns riscos e limitações da Palavra enquanto proclamadas por alguém. Ele reconhecia que a linguagem humana não era capaz de expressar o Verbo divino em toda sua plenitude, além disso ele temia não corresponder a verdade e atrair para si mesmo e não para Deus. O que fez com que ele continuasse a pregar foi sua humildade em reconhecer que deveria se colocar a serviço dos irmãos, e mesmo que sua linguagem fosse insuficiente para expressar aquilo que ele realmente gostaria de dizer, era necessário fazê-lo , pois o povo precisa de sacerdotes.


2.2.3 Agostinho diante de sua obra:


Um fato interessante da vida de Agostinho é que no final de sua vida, ele se colocou perante sua obra e a comentou à luz do Agostinho maduro. Essa obra de reflexão se chamou Retractationes. É claro que ele não conseguiu examinar toda sua obra, mas podemos analisar a evolução de seu pensamento através daquilo que ele comentou sobre seus próprios escritos.


Um breve exemplo da mudança de pensamento de Agostinho é seu posicionamento sobre milagres. Primeiramente, ele comenta nas Confissões descoberta dos corpos dos mártires Gervásio e Protásio em Milão e os supostos milagres que se produziram a partir disso. Agostinho se mostra um tanto cético e desinteressado pelo caso. Mais tarde, refletindo sobre os milagres apostólicos, ele dirá que o Cristianismo é como uma árvora que cresceu, necessitando no início, nos seus primeiros anos, de ser regada. Os milagres teriam, nessa fase, justamente o objetivo de regar a fé dos crentes, ele afirma:


"Estando a Igreja católica difundida e estabelecida por toda a terra, aqueles milagres não foram mais consentidos ao nosso tempo. Isso para que o nosso espírito não exija sempre coisas visíveis, e que o gênero humano não arrefeça pelo costume de se apoiar nestes bens, com cuja novidade se tinha inflamado"

Alguns anos após essa declaração, em 415, ocorre um fato que fará Agostinho rever sua posição. São descobertas relíquias de Santo Estevão - Agostinho não dá importância a isso - e um certo dia acontece um milagre diante da capela de Santo Estevão: uma anciã é curada. Agostinho, então, passa a reconhecer a atualidade dos milagres e afirma: quão admirável é Deus nos seus santos! Nas Retractationes, ele retira a opinião de que os milagres eram unicamente pŕoprios da época apostólica e afirma: 'Não se podem conhecer, nem enumerar todos os milagres que se produzem em nossa época".

 
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