Marjoe Gortner foi o primeiro pregador evangélico a denunciar as falcatruas da sua profissão. Em seu documentário Marjoe, gravado em 1971 e ganhador do Oscar no ano seguinte, Gortner revela os milenares truques da profissão e expõe as características de indústria do entretenimento que tornaram o evangelicalismo um movimento popular de enorme sucesso comercial.
Se viver para sempre, Hugh Marjoe Ross Gortner permanecerá provavelmente “o mais jovem ministro ordenado do mundo”. Nascido em 14 de janeiro de 1944, Marjoe quase morreu estrangulado pelo próprio cordão umbilical por ocasião do parto. O obstreta disse a sua mãe que apenas por um milagre a criança havia sobrevivido, e assim “Marjoe”, – de “Maria e José” – a Criança Miraculosa, assumiu sua posição na extremidade mais recente de uma longa linhagem de ministros evangélicos.
“Você começa com um cara que tem um problema muito evidente”.
Desde o começo suas habilidades de pregação foram meticulosamente cultivadas. Antes de aprender a dizer “mamãe” e “papai”, Gortner foi ensinado a entoar “Aleluia!” Quando tinha nove meses de idade sua mão ensinou-lhe o modo correto de gritar “oh, glória!” no microfone. Aos três anos de idade ele sabia pregar o evangelho de memória, e recebia aulas de interpretação dramática em toda espécie de arte performática, de solo de saxofone a manejo de bastão em desfiles.
No Halloween de 1948, com quatro anos de idade, Marjoe foi oficialmente ordenado ao ministério e lançado numa carreira extraordinariamente bem-sucedida; ele era a Shirley Temple do Cinturão da Bíblia norte-americano, a dispersa comunidade não-geográfica de aderentes radicais às escrituras cristãs. Na década seguinte ele pregou para tendas e casas repletas de uma costa à outra, enquanto audiências entusiásticas arrebanhavam-se para ver a Criança Miraculosa, que dizia-se receber seus sermões diretamente do Senhor durante o sono. Graças ao treinamento cuidadoso, à severa disciplina e à insaciável ambição de sua mãe, os sermões de Marjoe eram impecavelmente memorizados: cada palavra, cada pausa, cada gesto. “Aleluias” e “améns” pontuavam com freqüência as suas performances, que eram astuciosamente promovidas com títulos tais como “Da cadeira-de-rodas ao púlpito” e “Rumo ao último rodeio” (que Marjoe pregava em traje de cowboy).
Os cativantes sermões de Marjoe raramente deixavam de encher até a borda os pratos de coleta da igreja, e suas famosas curas de fé eram miraculosas até mesmo para ele. Na adolescência, no entanto, Marjoe foi se desiludindo diante da contínuo encenar de seus poderes divinos. Ele deixou o movimento evanglélico em busca de meios de sustento mais legítimos. Fez parte de uma banda de rock, tentando acompanhar os novos tempos, mas em seguida voltou para o circuito evangélico a fim de gravar seu documentário-denúncia. Marjoe é um daqueles filmes francos que toca áreas profundamente sensíveis da moralidade americana, e que resvalam na questão da locupletação.
[Em 1977] entrevistamos Marjoe em sua casa em Hollywood.
– Não tenho poder algum – ele foi dizendo logo, só para deixar as coisas muito claras. – E nenhum desses caras tem. Centenas de pessoas foram curadas nas minhas cruzadas, mas sei muito bem que não foi devido a alguma coisa que eu estivesse fazendo.
Com base em seus anos de treinamento e experiência, Marjoe situava a fonte do seu poder divino diretamente nos rebanhos que reuniam-se para receber das suas bençãos.
– Você começa com um cara que tem um problema muito evidente – explica ele. – Você tem de começar dessa premissa. As coisas não têm dado certo pra ele, ele está buscando alguma coisa, o que for. Ele então vem para uma dessas conferências de avivamento. Ele ouve coisas muito bem organizadas. Ele vê dezenas de pessoas radiantes ao redor dele, gente que parece estar muito, muito feliz; estão todos convidando o cara para vir e juntar-se ao seu grupinho e parece fantástico. Eles todos dizem: “Ei, minha vida mudou!” ou “Ei, consegui um emprego novo!” É neste ponto que ele está pronto para ser salvo, ou nascido de novo; e assim que ele nasce de novo eles todos o abraçam e dão-lhe palmadinhas nas costas. É como ser admitido num clube de elite muito especial.
“É como ser admitido num clube de elite muito especial”.
Para Marjoe, o verdadeiro espetáculo está com a audiência; ele servia primariamente como um regente de orquestra.
– Como pregador – diz ele, – estou trabalhando a multidão, observando a multidão, tentando conduzi-los a um ponto alto em determinado momento da noite. Deixo que tudo vá crescendo e contribuindo para aquele momento em que estão todos em êxtase. A multidão reage ao estímulo e você tem de cuidar para não interromper. Você começa dizendo que ouviu que aquela vai ser uma grande noite; em seguida começa a desfiar a cantilena e não deixa a peteca cair.
Para Marjoe, que já testemunhou-o um milhão de vezes, o momento divino de êxtase religioso não tem qualidade mística alguma. É uma simples questão de frenesi grupal que tem sua contraparte em qualquer agrupamento de pessoas.
– É exatamente como um concerto de rock – ele assegura. – Você tem um número inicial de impacto, depois segue com os velhos clássicos num crescendo que culmina com o seu maior sucesso.
A canção de sucesso, no entanto, é o renascimento espiritual, resultado de uma receita comprovada de religião na qual o pregador e cada membro da audiência contribuem com algum pequeno mas importante ingrediente. Então, de acordo com Marjoe, o único possível bis ao avassalador momento de ser salvo é uma demonstração pessoal do poder da fé recém-encontrada. Esse é o fator motivante para a aquisição do dom falar em línguas estranhas, também conhecido como “receber a glossolalia”. Como explicado por Marjoe, essa conhecida tradição evangélica requer uma participação ainda maior da audiência e da pessoa que recebe o dom de línguas.
– Depois que você foi salvo – prossegue Marjoe, – o passo seguinte é o que eles chamam de “encher-se do Espírito Santo”. Eles dizem a um novo convertido, “Está certo, você foi salvo, mas agora precisa do Espírito Santo”. Você então volta para obter a experiência com as línguas. Algumas pessoas recebem na mesma noite; outras voltam semanas ou anos antes de poderem falar em línguas. Você ouve as línguas, ouve todo mundo falando na igreja de noite, e estão todos dizendo “Nós amamos você e estamos esperando que você receba esta noite”. Então uma noite você vai até lá e eles ficam tentando fazer com que você receba a coisa, e você entra no que é em grande parte um transe; não chega a ser um frenesi, mas é uma experiência incrível. Durante esse momento a pessoa esquece tudo sobre os seus problemas. Ela está cercada por gente em quem confia e estão todos dizendo, “Nós te amamos. Você foi aceito por Cristo. Estamos aqui com você, entregue todo o seu ser, relaxe”. E mais cedo ou mais tarde a pessoa começa a falar um dut-dut-dut, e todo mundo diz, “É isso mesmo! Você recebeu!” O botão foi pressionado: a pessoa decola e começa de fato a falar em línguas: dêian-daiélo-mossatái-lissasso e assim por diante.
Em seus anos no cinturão da Bíblia Marjoe começou a ver a experiência evangélica como uma forma de entretenimento popular, uma espécie de teatro divino interativo que provê profundas recompensas emocionais às audiências.
“a experiência evangélica é uma forma de entretenimento popular”.
– As pessoas lá fora não vêem como entretenimento, mas na verdade é. Essa gente não vai ao cinema; não vai a bares nem bebe; não vão a concertos de rock; mas todo mundo precisa de uma válvula de escape emocional. Eles por isso vão a reuniões de avivamento e ali dançam á vontade e falam em línguas. Tem a aprovação do seu círculo social e é o escape deles.
Dentro do contexto do entretenimento social, Marjoe se orgulhava do seu papel de astro como evangelista itinerante.
– Minha tarefa era dar a eles o melhor show possível - conta ele. – Digamos, um pastorzinho tímido da Carolina do Norte ou de outro lugar. Ele precisa trazer evangelistas de fora para manter a sua igreja caminhando. Então nós vamos até lá, agitamos a multidão e somos superastros. É no carisma do evangelista que as pessoas acreditam; é isso que elas saem de casa para ver.
O que fez com que Marjoe se desiludisse ao ponto de se afastar do negócio de entretenimento religioso foram alguns dos aspectos perturbadores do movimento evangélico.
– Quando viajava eu costumava conhecer gente ansiosa para ser salva numa das minhas conferências; gente profundamente aberta e fervorosa em seu anseio pelo Espírito Santo. Era empolgante e estimulante, mas quatro anos depois eu voltava e via que aquela pessoa tinha se transformado num crente intolerante e cabeça-dura porque agora tinha Cristo. É aí que está o perigo. As pessoas querem uma experiência; querem sentir-se bem, e suas vidas podem de fato beneficiar-se disso. Mas quando você vai passando para a operação da coisa, o que resulta é gente autoritária, poder e dinheiro.
Marjoe reconhece que seu poder sobre as audiências deriva-se primariamente das habilidades de retórica que nos foram transmitidas pelos antigos gregos.
– Não faz diferença se você é um pregador, um advogado ou um vendedor – disse-nos ele. – Você começa interfetindo nos processos mentais de uma pessoa e gradualmente, em pouco tempo, consegue fazer com que eles se desviem para onde você quiser.
Hoje em dia Marjoe restringe a aplicação dos seus talentos à sua carreira de ator e às causas sociais em que acredita. Dentre essas a principal é informar as pessoas a respeito das técnicas de retórica utilizadas para manipular suas idéias e sentimentos. A maior parte das técnicas dominadas por Marjoe é simples e muito antiga, mas são tão eficazes que podem ser igualmente efetivas mesmo quando as pessoas são advertidas explicitamente, de antemão, de que técnicas de manipulação estarão sendo empregadas.
“Basta eu dizer a minha velha fala, Em nome de Jesus!”
– Dou palestras em universidades cerca de duas vezes por ano – contou Marjoe, – mas sempre deixo que eles peçam uma demonstração. Explico que não acredito naquilo, que uso toda uma série de truques. O título da palestra é “Retórica e carisma”, então ao final já deixei muito claro como é feito, mas eles ainda assim pedem para ver uma demonstração. Eu replico, “Não, vocês não estão realmente a fim de ver”, e eles dizem “Estamos sim! Queremos ver!” E eu digo, “Mas de qualquer forma vocês não acreditam, não tenho como fazer”. E eles: “Nós acreditamos! Nós acreditamos!” Depois de vinte minutos disso peço um voluntário, faço alguma garota subir ao palco e digo, “Então você quer se sentir melhor?” Ela diz que sim e eu: “É mentira! Você subiu até aqui só para se divertir e porque quer impressionar esse pessoal e me deixar com cara de bobo e ridicularizar essa história toda. Você tem certeza que não quer voltar para o seu lugar?” Sou duro com ela, e ela diz, “Não, não é isso. Eu acredito!” Continuo nessa linha até que ela esteja quase em lágrimas. E então, embora essa seja uma turma de faculdade e eu esteja fazendo a coisa toda como piada, basta eu dizer a minha velha fala, Em nome de Jesus! e tocá-los na testa e pam!, caem todos de costas no chão, todas as vezes.
Flo Conway and Jim Siegelman, em SNAPPING: America’s Epidemic of Sudden Personality Change
Veja também:
Entrevista e demonstrações de Marjoe no youtube
Em nome de Jesus
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